18/07/2022 às 00h00min - Atualizada em 18/07/2022 às 00h00min

Perda dentária não pode ser desvinculada das opressões estruturais, aponta estudo de professor da UFSC

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Um estudo realizado com três diferentes bases de dados e a partir de informações de 107.935 pessoas concluiu que as intersecções do sexismo estrutural com o racismo estrutural e a desigualdade de renda aumentam as chances de perda dentária total em idosos com 65 anos ou mais dos Estados Unidos da América (EUA). A investigação utiliza a teoria ecossocial sobre a distribuição de saúde e doença nas populações humanas para demonstrar como o corpo manifesta questões associadas à vida, às características identitárias e ao trabalho, por exemplo.

A pesquisa foi liderada pelo professor João Luiz Dornelles Bastos, do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, e lança um olhar para a perda dentária – tecnicamente denominada de edentulismo – a partir das características dos indivíduos e dos estados onde eles vivem. Helena M. Constante, Helena S. Schuch e Dandara G. Haag, junto com a professora Lisa M. Jamieson, são co-autoras do trabalho, publicado no Journal of Public Health Dentistry.

As análises foram baseadas em três fontes de dados: o questionário da Behavioral Risk Factor Surveillance System – sistema de pesquisas telefônicas relacionadas à saúde nos Estados Unidos, além de um estudo que estimou os níveis de racismo e sexismo estrutural e desigualdade de renda para cada estado norte-americano e do censo demográfico do país.

As iniquidades raciais no edentulismo e as estimativas de racismo e sexismo estrutural e de desigualdade de renda foram plotadas em mapas que destacam, em cores, onde esses problemas são mais preocupantes. Os indicadores gerais confirmam uma hipótese de que a perda dentária total é condicionada por questões estruturais: nos estados com altos níveis de racismo, sexismo e desigualdade de renda, os respondentes negros são mais afetados pela perda dentária total do que os brancos.

Segundo o professor, o estudo é o primeiro a demonstrar empiricamente o fato. “Se você reside num estado norte-americano em que os níveis de racismo, sexismo e desigualdade de renda são elevados, a chance de você ter perda dentária completa é mais elevada, especialmente se você for negro. Supomos que esses estados têm serviços de saúde menos acessíveis e apresentam maiores níveis de segregação, forçando a população negra a ter condições de trabalho e de moradia precárias”, contextualiza. “A restrição no acesso aos serviços de saúde bucal e as piores condições de vida e trabalho são causas importantes da perda dentária”, explica.

Os níveis de racismo e sexismo estrutural e desigualdade de renda foram extraídos de um estudo sobre os impactos dos sistemas de opressão na saúde, liderado pela socióloga Patricia Homan, do Programa de Saúde Pública da Universidade da Flórida. O racismo estrutural, por exemplo, foi reconhecido a partir de nove indicadores de desigualdade racial em cinco diferentes domínios da vida: judicial, educacional, político, econômico e habitacional.

Conforme os pesquisadores, os resultados do trabalho dão credibilidade à hipótese de que as iniquidades raciais em saúde bucal não podem ser desvinculadas de forças sociais que alocam poder e recursos de forma injusta e diferenciada entre os grupos populacionais. “A distribuição desigual dessas causas fundamentais das iniquidades em saúde não é alcançada apenas ao longo de linhas raciais, mas também com e através de linhas de gênero e classe, como as estudiosas da interseccionalidade têm argumentado há muito tempo”, observam, no texto.

Causas diversas

Bastos explica que a perda dentária total pode ter diversas causas, desde a doença periodontal, de natureza inflamatória, considerada um problema frequente entre idosos, até a extração dos dentes em razão da cárie dentária, doença provocada por bactérias presentes na boca.

Mas, segundo o pesquisador, há outros fatores a serem considerados. Ele cita como causas intermediárias o acesso restrito a serviços de saúde bucal de qualidade. “O que acontece quando um profissional lhe atende poucas vezes? Ele não consegue tomar medidas para prevenir a perda dentária. Não consegue restaurar, não consegue tratar aquela doença periodontal que está amolecendo já o dente”.

Além disso, ele lembra que muitas vezes o paciente só tem acesso a um serviço mutilador, em que a abordagem do profissional pode ser, ao invés de conservar o dente, extrai-lo. “Essa é uma prática ainda disseminada: um tratamento mutilador que é oferecido para as pessoas, principalmente os segmentos mais excluídos da população”.

O estudo, por outro lado, aborda o que seriam as chamadas ‘causas distais’ do problema: aquelas que estão na estrutura, na base da perda dental entre os idosos. “O artigo trata das causas das causas. Nos estados em que os altos níveis de sexismo estrutural se combinam com altos níveis de racismo estrutural ou desigualdade de renda, a chance de perda dentária é mais elevada”, disse. Nos mapas plotados no estudo, é possível perceber que os níveis mais altos de racismo estrutural, sexismo estrutural e desigualdade de renda estão concentrados regionalmente, com alguma predominância no sul.

Estados como Minnesota e West Virginia apresentaram frequências ligeiramente mais altas de edentulismo entre brancos do que negros. Já no Havaí, por exemplo, a prevalência de edentulismo foi de 58,8% entre negros e 6,7% para brancos, correspondendo a uma diferença de 8,2 vezes – a maior do país. “Vale a pena mencionar que a magnitude da iniquidade racial no edentulismo foi maior nas regiões Sul, Centro-Oeste e Meio-Atlântico, onde níveis mais elevados de sexismo estrutural e desigualdade de renda foram observados. As regiões Oeste e Noroeste também foram marcadas por altos níveis de racismo estrutural e de iniquidade racial na perda dentária”, pontuam, no artigo, os pesquisadores.

Brasil está no horizonte das investigações

Segundo o professor, a pesquisa foi realizada com dados norte-americanos por conta da disponibilidade de informações. “Em outros países, é preciso que pesquisadores se dediquem a esse tópico para estabelecerem os critérios da pesquisa”. Para o Brasil, por exemplo, ele lembra da dificuldade de acesso a determinados indicadores, como os de distribuição racial no sistema prisional, que poderiam contribuir com a definição dos níveis de racismo. Outra questão são os investimentos escassos em pesquisa. “Mesmo assim, temos muita gente mobilizada para fazer esses trabalhos, incluindo, por exemplo, os membros do Grupo Temático de Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva”, comenta.

Bastos se refere à abordagem ecossocial, que trata do conceito de incorporação ao considerar que o corpo é retrato do meio em que vive. “O ponto é que a gente incorpora na nossa biologia, no nosso corpo humano, todo o ambiente em que a gente vive e todas as nossas experiências”, diz. “Por isso, é preciso levar em consideração processos mais amplos, como o racismo estrutural, o sexismo estrutural e a desigualdade de renda, incluindo seus impactos sobre a saúde”.

Demonstrar empiricamente isso é uma forma de considerar o que se chama de interseccionalidade – sistemas de opressão que operam em conjunto e se co-constituem. “A desigualdade racial na perda dentária foi modulada pelos níveis de sexismo. O racismo é o principal processo, mas ele não opera isoladamente, age em conjunto com outros sistemas de opressão”. O professor, que investiga a temática racial desde o início da carreira, agora trabalha na síntese de dados de toda a população estadunidense, não só dos idosos, foco do artigo.
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